Esta entrevista foi publicada originalmente no blog Crux Sabbati e autorizada a publicação pela entrevistada, Katy de Mattos Frisvold. Bruxaria.net
Crux Sabbati: Quais as definições que você pode nos fornecer sobre Bruxaria?
Katy de Mattos Frisvold: Bruxaria,em matérias acadêmicas como História, Antropologia e Ciência das Religiões, é o uso alegado de poderes sobrenaturais ou mágicos. Na história isto já levou muita gente a enfrentar sérios problemas, incluindo o problema mais famoso de todos, a Inquisição. Pela pequena heresia de se roubar uma hóstia para realizar uma “simpatia”, uma pessoa podia arder na fogueira. Não é incorreto, por exemplo, declarar que a parteira ou a curandeira fosse considerada uma bruxa, pois o conhecimento das ervas e seus usos foram proibidos pela Igreja, sendo este papel sancionado a uma classe científica que ainda engatinhava. Vale também mencionar as conhecidas “velhacas” que moravam nos subúrbios, na margem entre a natureza e a sociedade, entre um limite e outro, lendo a sorte nas cartas e negociando talismãs.
CS: Existe diferença entre Bruxaria e Feitiçaria? Estas duas coisas estão ligadas?
KMF: Embora a teoria do antropólogo E.E. Pritchard dê sustentação à diferenciação entre bruxaria e feitiçaria, esta se resume ao uso de ferramentas externas ao próprio bruxo, e ele mesmo contra-argumentou usando o fator de popularidade, o de uso comum de associação, pelo menos na Europa. Historiadores em peso discordam por encontrarem traços abundantes que apontam para bruxas que poderiam igualmente usar técnicas físicas, da mesma maneira que tentavam isto através de “pensamentos”. As razões para as acusações de bruxaria, historicamente, caiam em quatro categorias gerais:
1. Uma pessoa que era pega no ato de feitiçaria, “positiva” ou “negativa”
2. Pessoa bem intencionada, curandeira, que perdeu a confiança de seu cliente ou das autoridades
3. Uma pessoa anti-social
4. Uma pessoa que reputadamente era uma bruxa e era cercada por uma “aura estranha”
2. Pessoa bem intencionada, curandeira, que perdeu a confiança de seu cliente ou das autoridades
3. Uma pessoa anti-social
4. Uma pessoa que reputadamente era uma bruxa e era cercada por uma “aura estranha”
Em suma, qualquer um que sinta se encaixar nestas definições pode reclamar o título de “Bruxo” por direito, e feitiçaria, como exposto, é uma prática inerente ao título de “Bruxo”, embora não exclusiva daqueles que se chamam bruxos uma vez que existem vários outros caminhos espirituais que utilizam estas práticas, a exemplo doVoodu. Se nos fundamentarmos na história e mitologia, a Bruxaria é uma realidade poética que pertence à humanidade. Como o Nicholaj disse certa vez: “A bruxaria é tratada como uma parte importante e integrada de nossa herança como seres humanos. Dado o ritmo acelerado em que nosso mundo se torna cada vez mais cético e materialista, acabamos perdendo os valores tradicionais implícitos nos reinos invisíveis, descartados como supersticiosos.” Torna-se claro que qualquer pessoa pode reclamar o título e o caminho, e com isso se intui mudar este mundo doente. Eu suspeito muito daqueles que resistem a esta idéia protegendo este título com unhas e dentes.
CS: Qual é a ligação entre Bruxaria e Paganismo?
KMF: Uma idéia que tem crescido e se espalhado sem muito questionamento liga a figura da Bruxa a um obrigatório sacerdócio, ou seja, uma “Bruxa sacerdotisa de um culto Pagão ou Neopagão”. Contudo, esta ligação não encontra respaldo histórico ou mitológico até a criação da Wicca, no início da década de 50, por Gerald Gardner, que criou um híbrido capaz de abraçar tanto o ethos da Bruxaria e o ethos Neopagão.
CS: Você poderia falar um pouco do que é Paganismo e Neopaganismo?
KMF: O termo Paganismo originalmente designava um morador do campo, um “rústico”, em seu uso primário, e, no entanto, este termo abraçou várias outras definições, bem como a das tradições não abraâmicas nativas, que antecedem a chegada do Cristianismo na Europa. Lógico que esta é uma super-simplificação, tendo em vista que a história do termo é facilmente encontrada por aí e não vejo como poderia acrescentar mais sem perder o foco desta entrevista. O Neopaganismo, por sua vez, é a restituição ou mesmo a reconstrução destes cultos pagãos que, em algum ponto do tempo cessaram sua existência, deixando somente traços acadêmicos, literários e artísticos, sem uma linha de sucessão iniciática.
CS: Ao que você se refere como “ethos” da Bruxaria e qual é esta diferença de “ethos” com o Paganismo?
KMF: Ethos é palavra grega que agrega os valores, a ética, os hábitos e a harmonia de uma pessoa ou grupo. É o que faz a diferença entre os grupos: a identidade social. Não há como falarmos do que constituiu a figura da bruxa sem mencionarmos os rastros históricos. Uma das primeiras menções históricas que temos da bruxa é proveniente da Mesopotâmia, através dos tabletes de argila encontrados pelas escavações arqueológicas. Se formos observar o Maqlu, que é uma coleção de tabletes que reflete as crenças oficiais daquela região, as bruxas poderiam ser provenientes de qualquer camada social, e ainda que fossem, em sua maioria, estrangeiras, elas podiam também estar presentes em uma grande variedade de profissões, sendo encontradas, ainda, na profissão de exorcistas.
A “bruxaria” no Maqlu está sempre associada à “magia maléfica”, e é no épico de Enmerkar e Ensuhkesdann que vamos encontrar pela primeira vez a diferença entre a “mas mas” e a “um ma” como referência às bruxas que operam à favor ou contra o rei, o que as distinguiria como “benéficas” ou “maléficas”, é então lógico que isto já dependia do ponto de vista, fosse do rei vencedor ou do rei vencido. Este aspecto dual da bruxa pode ser encontrado, por exemplo, na oposição entre Malandantie o Benadanti italianos, como descrito por Carlo Ginzburg[1].
Havia uma clara separação da figura da bruxa com a do sacerdócio oficial. Enquanto as bruxas claramente operavam com certos aspectos da deusaInanna (Vênus), os sacerdócios oficiais dos cultos aos deuses se encarregavam da “pureza” dos devotos frente aos deuses, combatendo, através de rituais de purificação, os efeitos dos bruxedos, considerados já naquela época, como o uso “ilegal” dos poderes divinos. Por “ilegal”, devemos entender “o que não era autorizado”, ou seja, sancionado pelos cultos estruturados a cada um dos deuses. É uma zona “cinzenta”, vamos assim dizer. Historicamente vamos encontrar a figura da bruxa ligada à necromancia e adivinhação (como a bíblica de Bruxa de Endor, por exemplo), às transformações (como Circe e Medeia), e aos feitiços de cordas, amuletos, bonecos e encantamentos dos mais variados, ou seja, não dá para desligá-la de sua característica mais proeminente: a arte da feitiçaria, de moldar a realidade através do conhecimento da natureza, da magia.
CS: Você quer dizer então que um Pagão não é um Bruxo?
KMF: Não. O que quero dizer é que qualquer pessoa que se dispuser a trabalhar “bruxaria” pode ser considerada uma “Bruxa”, inclusive um pagão, no entanto o contrário não é necessariamente aplicável. Historicamente sempre houve um consenso neste sentido, jamais do contrário como hoje alguns grupos fazem, tomando o termo de forma egoísta e mostrando uma agenda focada no “controlar”, ao invés do “informar”, ou ainda, construindo híbridos inexplicáveis que não encontram pares em qualquer lugar do mundo. Retornando ao ponto, um Pagão é aquele devoto de um deus cujo culto é antigo, pré-cristão, que é estruturado com regras, dogmas e doutrinas. Ele não opera em uma “área cinzenta” se estiver sancionado pelo seu culto. Um Neopagão, por sua vez, é um devoto de um deus cujo culto foi em algum lugar da história, extinto, ou seja, não possui uma linha de sucessão iniciática. Durante um processo de reconstrução estes aderentes podem abrir espaço para incorporar seus anseios, práticas e ensinamentos da maneira que acham mais acertados.
Uma característica muito visível nas reconstruções é que elas geralmente operam em uma forma de “multi-sacerdócio”, numa tentativa de ressuscitar todo um panteão que acaba falhando na especialização dos deuses, como podemos observar amplamente nos cultos pagãos originais. Esta idéia de “multi-sacerdócio” foi incorporada a uma forma específica de bruxaria (a Wicca), logo, esta obrigatoriedade sacerdotal em toda a Bruxaria não é procedente, mas uma falácia. O que fica claro em toda a história da humanidade é que o Bruxo, não importando qual é a religião vigente ou da moda, sempre operará nesta área cinzenta entre a crença religiosa e o que é proibida nela. É suficiente observar a prática das benzedeiras, que sempre gerou condenações por parte da Igreja Católica embora elas sempre se considerassem “boas cristãs”. O que aconteceu com a prática das benzedeiras foi simplesmente uma “importe” de práticas que pré-datavam o cristianismo para uma linguagem da religião oficial. É desta zona cinzenta que falo. Contudo, com a liberdade religiosa que encontramos hoje em dia, é de total escolha da Bruxa de aderir ou não à uma religião Pagã ou Neopagã, se esta escolha permite as operações nesta “zona cinzenta” ou não, ou ainda, se ela vai acatar as regras, ou não.
CS: Se entendermos Bruxaria desta forma, como poderia existir esta Bruxaria Tradicional, já que parece ser uma coisa estruturada?
KMF: O termo “Bruxaria Tradicional” foi cunhado pelo falecido Robert Cochrane em 1964, como uma forma de separar as práticas legadas das práticas criadas/repaginadas. Esta primeira referência surgiu no artigoWitchcraft Today, escrito para a revista Pentagram[2], e que mais tarde foi organizada no livro “The Roebuck in the Ticket, An Anthology of Robert Cochrane Witchcraft Tradition”[3], muito mais como uma forma de evitar a generalização de toda a bruxaria como se fosse unicamente a Wicca difundida por Gardner. Cabe então analisar sucintamente os termos “Bruxaria”, e “Tradicional” separadamente para que possamos entender exatamente do que se trata.
Por “Bruxaria” podemos compreender que se trata de ações que independem de religião ou localização no planeta, bastando a crença nos poderes invisíveis de deuses, espíritos, gênios, etc., que visem a transformação e/ou manipulação destas forças para alterar uma realidade, interna ou externa ao próprio operador. Seus métodos são pragmáticos, e somente as operações que realmente são eficientes são as que sobrevivem através dos tempos. É este o fator de consenso histórico, o que pode ser encontrado em estudos acadêmicos sobre a história factual da bruxaria, e que difere dos mitos dos atuais aderentes das “religiões” chamadas de “bruxas”.
Tradição é uma expressão do ethos de um grupo ou sociedade, composto de conhecimentos acumulados, crenças, valores e costumes. Ela é proveniente do latim “tradere, traditio, ou ainda traditionis”, que significa trazer, entregar, transmitir. Assim, ela transmite certo conteúdo que pode ser uma memória cultural, espiritual e material. Este conteúdo geralmente é um conjunto de idéias, recordações e símbolos que passam através de gerações. A Tradição, via de regra, é uma doutrina, uma cosmovisão e não um dogma. A partir de uma Tradição, é possível encontrar correlações com todas as outras, por mais diferentes que sejam suas origens, sem, no entanto perder a atenção os elementos que dão o contexto cultural dela, ou seja, suas similaridades e diferenças são importantes. A Tradição só não conhece fronteiras. Infelizmente em nossos dias é comum ater-se somente ao aspecto de legado, sem haver um critério específico no conteúdo ou qualidade deste legado.
Portanto, quando falamos de “Bruxaria Tradicional”, estamos falando da defesa à multiplicidade das expressões tradicionais, reconhecendo os pontos em comum que todas elas possuem. Isto significa que é necessária umaperspectiva tradicional. É caminhar na circunferência de um círculo sem perder de vista o ponto, o centro, o eixo central de sua própria condição, o seu papel no mundo.
O termo “Bruxaria Tradicional” não deve ser confundido como uma única “tradição da terra”. Ele é um termo que abarca estas tradições, e, portanto, um bruxo tradicional, como não encara a “bruxaria” como uma religião a que se deva converter, fica livre para estudar e se submeter a iniciações em diversos cultos específicos a deidades que encontrarem ressonância com sua própria convicção e conexão espiritual, visando acumular conhecimento o suficiente para atingir seu ponto de iluminação. É uma questão de utilidade, de se estar equipado da melhor forma para atingir seus propósitos no mundo ou além dele…
CS: E qual a diferença entre Bruxaria Tradicional e Bruxaria Hereditária?
KMF: É mais simples dar um exemplo: Se você é nascido e criado basco, você terá um conjunto de valores passados pela sua família. Ele é passado pelo sangue e pela palavra. Você pode se considerar um Bruxo Hereditário. Agora se eu sou “adotada” em sua família, eu sou uma Bruxa Tradicional: sou alguém que recebeu a “palavra”, ou seja, “a transmissão/tradição”. Não é incorreto um Bruxo Hereditário se chamar de Tradicional, pois ele também carrega a “tradição”, mas é incorreto um Bruxo Tradicional dizer ser um Bruxo Hereditário, por que não houve ali transmissão sanguínea. É uma questão de reconhecimento de parentesco.
CS: Um Bruxo Tradicional pode, então, misturar elementos de vários cultos em suas práticas?
KMF: Isto é parcialmente verdadeiro. Se tenho que trabalhar um feitiço, visualizo qual seria a melhor método para alcançar minha meta. Caso a decisão seja trabalhar com Voodu Haitiano, um culto bastante feiticeiro (como poucos) no qual sou iniciada, não misturo outros elementos senão os feitiços que já existem dentro desta tradição. Ou mesmo se decido trabalhar com Kimbanda, isto será feito somente dentro daquele contexto. Logo, se vou trabalhar um feitiço rural europeu, certamente vou fazer isto dentro de um círculo mágico dedicado ao patrono da minha tradição.
Nem todo Bruxo Tradicional é iniciado em vários cultos, mesmo sabendo que nada o impede disto. Isto é uma preferência pessoal, e não obrigatória. O que chamamos de “Bruxaria Tradicional”, com base na definição original deste termo é esta visão, esta perspectiva, esta liberdade de escolher as melhores “tecnologias”, ao entendermos que estas tradições se tocam pela similaridade mitológica e prática.
CS: Mas onde todas estas Tradições se tocam?
KMF: É aqui que entra a importância do estudo de religiões comparadas, não só nos mitos, mas em suas formas de culto. Se nos focarmos somente na mitologia, podemos mencionar a similaridade de poderes e mitos entre o deus ferreiro Hefesto, Tubal Caim, Ogun, Vulcano, Ptah, Brahmanaspati, Tchuang-tsé, Bung, etc. Todos eles, invariavelmente, falam de uma forja que é material e também simbólica, que representa todo o processo de formação, purificação e conformação do metal, um processo alquímico externo e interno. Ao mesmo tempo, eu não sou iniciada no culto de Ptah, e então eu jamais me atreveria em trabalhar uma petição com ele. Se tenho em mãos um feitiço onde ele figura, posso conseguir os elementos a ele consagrados através de um sacerdote de seu culto e operar em um feitiço com estes elementos. Historicamente as bruxas adoravam roubar hóstias e pedras de ara das igrejas para trabalhar seus feitiços e, até onde temos relatos, nenhuma delas teve que virar freira para isto. Desde que o Cristianismo penetrou na Europa revestindo muitos dos deuses pagãos, as práticas que lidavam com deidades também foram importadas para dentro daquele contexto. Eu realmente compreendo a finalidade deste processo de ressurreição de deuses pagãos, mas penso que enquanto os bruxos modernos estiverem muito ocupados em fazer oposição à ICAR e a todos os elementos pertencentes a ela, eles só demonstram que ainda não conseguiram discernir a completa dimensão espiritual da Bruxaria, nem mesmo a que seus próprios deuses podem fornecer.
CS: Bruxos Tradicionais são elitistas?
KMF: Em certo sentido poderíamos dizer que sim. Não conseguimos visualizar uma “bruxaria de massa”, desde que tradicionalmente os grupos são compostos de poucos elementos, ligados pelo “sangue” e “chamado”. Não há como expulsar uma pessoa da “família”, uma vez que ela está dentro. Aqueles que não compreendem este caráter “elitista” são justamente aqueles que enxergam bruxaria como uma espécie de “sistema” ou “ordem”, onde a possibilidade de expulsão de um membro realmente existe. Devo ainda ressaltar que nos últimos anos houve uma campanha gigantesca para associar o elitismo natural de uma família como se fosse algo esnobe. Isto está totalmente longe da realidade.
Eu poderia dizer que a família “de Mattos”, para citar um exemplo, é elitista. Ali só entra os que são “de Mattos”, tanto de sangue quanto os “adotados” na família. Ninguém iria achar isto uma forma de “esnobismo”. Isto foi causado muito mais por um sentimento ruim daqueles que se sentiram de, alguma forma, excluídos, não só das “famílias” de Bruxaria Tradicional quanto de suas complicadas perspectivas, quando observadas dentro de um contexto Pagão/Neopagão ou Wiccano. Sempre houve uma tendência, até mesmo tradicional, de preservar nossas práticas – tão incompreendidas – longe dos olhos daqueles que não pertenciam à nossa família.
CS: O que mudou para que você e outros Bruxos Tradicionais passassem a revelar o que antes era mantido secreto?
KMF: Eu não acho que revelei muito aqui, nada além da perspectiva interna da Arte, nem do que qualquer pessoa poderia em qualquer momento captar prestando atenção na história da Bruxaria e aprendendo a descartar os milhares de mitos que se desenvolveram nesta era de “religião fast-food”. Contudo, se hoje fiz questão de expressar isto tudo da maneira mais simplificada que pude, é porque já existem aqueles que querem institucionalizar a bruxaria, bem como a bruxaria tradicional como um todo estruturado, quasi-pagão, recheados de ideologias militaristas-salvacionistas, em defesa de valores que não correspondem nem ao mito e muito menos à realidade, com uma agenda de “controle de qualidade” que teima em desrespeitar e descaracterizar o verdadeiro significado do que é a Bruxa tradicionalmente.
Com a popularização desta corrente de pensamento de bruxa-sacerdote, aumentou também o número de pessoas preocupadas em obter o sacerdócio dentro de cultos e tradições que não possuem uma sucessão iniciática tradicional. Alguns, menos escrupulosos, talvez bem intencionados, talvez desesperados e perdidos no medo do anonimato, ou ainda visando um retorno financeiro, forjaram estas linhagens do dia para a noite. Houve alguma variação no processo de estudo para montar seus sistemas e seus diferenciais, e é possível observar que alguns conseguiram montar sistemas coesos, onde elementos de bruxaria são sustentados por fontes clássicas, outros, com elementos encontrados na literatura popular americana, e alguns têm a pequena constituição, simplesmente plagiando material. É este o pequeno universo “bruxo” da era web, onde falsidades são defendidas a unhas e dentes. É triste.
Como disse antes, acredito que a doutrina deva prevalecer, contrariamente às tentativas de se alimentar o dogma, quando se criam associações, federações, conselhos e igrejas.
CS: E qual é o seu ganho em revelar?
KMF: Para ser sincera não vejo ganho algum com isso. Eu não dirijo nenhuma associação, federação, conselho ou igreja: ou seja, não tenho a intenção de controlar ninguém com essas informações. Nossa “família” há tempos ultrapassou os limites de membros, bem como os geográficos, e nosso “reconhecimento” é internacional. Meu marido havia publicado livros sobre tema no exterior que foram extremamente bem recebidos, e aqui já há um traduzido e outros, de temas diversos, a serem traduzidos.
Por outro lado, sempre achei que a Bruxaria é um chamado do sangue, do espírito e da terra. Eu entendo que não somos os únicos apaixonados pela sabedoria da natureza, e são muitas as pessoas que chegam com o coração atribulado e a mente queimando pelas questões que alguns deixam vagar sem respostas, ou simplesmente com respostas que não correspondem com a realidade factual. Eu também vejo que existem muitas tentativas de pessoas querendo se tornar líderes usando falsas premissas e me chateia muito ver que estas falsas premissas fazem com que muita gente desista deste caminho tão maravilhoso que é a Bruxaria. Ultimamente ando tentando usar o veneno para fabricar um antídoto, ou seja, usando destas falsas premissas para indicar as premissas corretas, que encontra respaldo acadêmico (e não de copy/paste de materiais da internet), e então eu gostaria de agradecer às resistências pelas sugestões e idéias. Eu diria que revelo pela utopia, pela identificação com aqueles pouquíssimos que se dão ao trabalho de guiarem suas próprias vidas espirituais e que se recusam a fazer parte do rebanho.
CS: Percebi que você tenta fugir do emprego da palavra Religião. Poderia dizer o porquê?
KMF: Eu não acredito que possamos ligar o que nunca esteve desligado. Se continuamos respirando, “se somos”, como estaríamos desligados do Criador – seja ele/ela o nome que se der? Eu acredito que seja muito mais uma questão de lembrar do vínculo do que vincular. Gosto muito da expressão “Tradição” porque ela engloba todos os aspectos que considero importante na jornada humana, desde que parte da gênese ao cultural que se vivencia. Mas lógico, esta é uma opinião muito pessoal, nem sempre compartilhada por meus pares.
CS: Para finalizar, gostaria de perguntar se é possível para qualquer um abrir seu próprio grupo (Clã, Cuveen) de Bruxaria Tradicional.
KMF: Sim, e sem precisar de linhagens forjadas!
Definimos os quatro pilares essenciais da Bruxaria Tradicional como segue:
1 – Uma mundovisão tradicional
2 – Sucessão horizontal linear (horizontal)
3 – Ingresso espiritual (vertical)
4 – Valores tradicionais
2 – Sucessão horizontal linear (horizontal)
3 – Ingresso espiritual (vertical)
4 – Valores tradicionais
Para o primeiro item é necessária a completa noção do que Tradição – e aqui eu indico firmemente os escritos de René Guenón. Para o segundo, o poder deve ser passado por uma pessoa que tenha real conexão espiritual, e isto nós temos abundantemente no Brasil, na figura que se expande da benzedeira à parteira, à médium clarividente e ao curandeiro. Para o terceiro, é necessário se fazer uma conexão direta com a terra, com os espíritos conectados a ela e saber trabalhar a verticalidade, ou seja, suas ligações divinas/celestes. Os valores tradicionais são os fundamentos do “ethos” do grupo em questão, e neste caso, talvez seja necessário mencionar os nossos para exemplificar: Verdade, Honra e Ancestralidade.
É bom deixar claro que quando falo de conexão com a terra, isto implica em se “adotar” uma terra para chamar de sua. Vale a do irmão espiritual, vale o parque nacional. O importante é criar uma “relação” com os espíritos de uma terra em particular, lembrando que cada terra tem “colorações diferentes” que vão influenciar no próprio poder do Bruxo.
Agora, antes de sair por aí “abrindo” clãs, o líder e fundador deve ficar avisado de que esta é uma grande responsabilidade, e, portanto, uma análise profunda de suas motivações deve ser considerada. Um verdadeiro líder, umMagister, deve ser a “pedra fundamental” do grupo, não buscando forçar um consenso, mas modelá-lo de acordo com os valores tradicionais. A marca de um verdadeiro líder é a humildade, e sabemos quando temos o líder certo quando temos que apontá-lo, e não simplesmente engoli-lo a seco, em especial quando ele parece ser justamente aquele que precisa de maior amadurecimento espiritual. Fuja destes, e, como sempre sugiro, questione sempre!
Katy de Mattos Frisvold é peregrina iniciada da Arte Tradicional em várias das manifestações nas quais ela se desdobra. Dentre as mais famosas, a Via Vera Cruz e o Lilium Umbrae Cuveen, a mais recente extensão doClan of Tubal Cain da Inglaterra. Atualmente, dedica seu tempo entre a profissão de tradutora de livros ocultistas, escrevendo esporadicamente para seu blog www.diablerie.com.br, e o dia a dia do campo. Mora em Extrema-MG com seu marido, o autor norueguês Nicholaj de Mattos Frisvold.
Bibliografia Recomendada:
Ankarloo, Bengt & Clark, Stuart (2004). Bruxaria e magia na Europa(todos os seis volumes), Editora Madras
Agrippa, Henry Cornelius (1531/2008) Três Livros de Filosofia Oculta. Editora Madras.
Cochrane, Robert & Jones, Evan John (Ed. Mike Howard). 2001. The Roebuck in the Thicket. Cappall Bann.
Cochrane, Robert & Jones, Evan John (Ed. Mike Howard). 2002. The Robert Cochrane
Frisvold, Nicholaj de Mattos (2010). Artes da Noite. Editora Rosa Vermelha
Frisvold, Nicholaj de Mattos (prev 04/2011). A Arte das Indomadas. Editora Rosa Vermelha Ginzburg, Carlo (1991). Ecstasies. Deciphering the Witches’ Sabbath. Penguin. NY
Guenón, René (1977). “A Crise no Mundo Moderno”, Editorial Vega
Hutton, Ronald (1999). The Triumph of the Moon. Oxford University Press.UK
Jackson, Nigel (1996). Masks of Misrule. Capall Bann. UK
Summers, Montague (1945). Witchcraft and Black Magic. Rider & Co.London
Sussol, Max (1995). O Livro dos Benzimentos Brasileiros. DCL. SP.
Thorndike, Lynn (1929). A History of Magic and Experimental Science.
The Macmillan Walter, Philippe (2007). Christianity; The origins of a Pagan Religion. Inner Traditions. Vermont
The Macmillan Walter, Philippe (2007). Christianity; The origins of a Pagan Religion. Inner Traditions. Vermont
Walker, D.P. (2000) Spiritual and Demonic Magic. Penn. US
Weyer, Johann (1577/1991). Witches, Devils and Doctors in the Renaissance. Center for Medieval and Early Renaissance Studies. Universityof New York. NY
Wilby, Emma (2005) Cunning Folk and Familiar Spirits. Sussex Academic Press. UK
[1] Vide, Ecstasies, Decifrando o Sabá das Bruxas
[2] Edição no. 2, de Novembro de 1964.
[3] Evan John Jones & Robert Cochrane, editado por Mike Howard, Capall Bann Publishing, pg 51
[2] Edição no. 2, de Novembro de 1964.
[3] Evan John Jones & Robert Cochrane, editado por Mike Howard, Capall Bann Publishing, pg 51